Em 1966, uma pergunta de um aluno do ensino médio em uma palestra com o físico britânico Denis Osborne (1932-2014), da Universidade de Dar Es Salaam, na capital da Tanzânia o desconcertou. “Se você pegar dois copos de igual volume de água, um a 35 graus Celsius (°C) e outro a 100 °C, e coloca-los em um refrigerador, o que estava a 100 °C começou a congelar primeiro. Por quê?”, indagou Erasto Mpemba, que morreu no início desta década.
O questionamento tinha origem em uma observação do jovem tanzaniano quando, algum tempo atrás, preparava sorvete em casa. O estudante notou que, estranhamente, uma mistura de leite fervido e açúcar congelava mais rápido do que outra mais fria, que não fora ao fogo. Após analisar o relato do menino, Osborne decidiu testá-lo. O resultado, confirmando as perguntas iniciais do aluno, foi publicado em 1969 em artigo redigido por ambos no periódico Physics Education.
A capacidade de a água quente, e também de outros líquidos, solidificarem-se antes de seus congêneres mais frios é designada efeito Mpemba. As especificidades, macroscópicas e contraintuitivas, desafiam a lei do resfriamento de Isaac Newton (1643-1727), segundo a qual a perda de calor de um corpo é diretamente proporcional à diferença entre sua temperatura e o ambiente.
Quando foi percebido pela primeira vez o efeito Mpemba?
O efeito Mpemba já havia sido percebido na água por Aristóteles na Antiguidade, mais de 2 mil anos antes, e posteriormente pelo filósofo britânico Francis Bacon (1561-1626) e o matemático francês René Descartes (1596-1650). Nunca foi explicado de forma convincente pela termodinâmica, que estuda a transferência de calor e de outras formas de energia em um sistema. Ainda hoje não há consenso sobre o que faz a água mais quente se solidificar antes da fria.
Nos últimos anos, tem crescido o interesse na compreensão de espectros analógicos ao efeito Mpemba nos domínios da mecânica quântica, que estuda o comportamento da luz e da matéria na escala atômica e subatômica, no mundo microscópico.
Um estudo publicado em outubro no periódico Cartas de revisão física propõe uma explicação teórica da versão quântica do assunto e sugere um caminho para que ela seja manipulada. “Os estudos anteriores focavam em sistemas e condições muito restritos. Nosso trabalho expande o escopo teórico para compreender e ativar o efeito Mpemba em qualquer sistema quântico”, explica a física brasileira Krissia Zawadzki, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP) e coautora do artigo, ao lado de uma equipe do Trinity College de Dublin, na Irlanda.
Mas na práica, o que é o efeito Mpemba?
O efeito Mpemba pode ser entendido como a aceleração de um processo que tenta levar o estado inicial de um sistema para outro que fique fixo no tempo, chamado de estacionário. Se esse estado tem uma temperatura bem definida, ele está em equilíbrio. Nessa situação, é possível saber exatamente a proporção de moléculas que estão quietas e em movimento e o grau de melhoria segue uma distribuição de probabilidades conhecidas.
Quando a água está congelando ou fervendo, essas informações são perdidas e o sistema é considerado fora do equilíbrio. Estar inicialmente fora de equilíbrio pode ser interessante quando essa situação permite tomar uma rota mais rápida para o estado final que se deseja alcançar.
Como este princípio se aplica no universo quântico?
Um raciocínio semelhante é adotado para sistemas quânticos. “Chamamos de efeito Mpemba quântico qualquer particularidade que faça com que um sistema quântico chegue mais rápido ao equilíbrio quanto maior para seu estado inicial de desequilíbrio”, esclarece Zawadzki.
É o mesmo princípio paradoxal do efeito Mpemba original, em que o mais quente congela antes do que o menos quente. No universo quântico, quando esse ocorre, o mais desequilibrado se equilibra antes do menos desequilibrado.
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Para ativar uma versão quântica do efeito Mpemba, o estudo propõe selecionar as partes de um sistema, chamadas de modos, que apresentem maior desequilíbrio de energia, ou seja, que exibam propriedades quânticas em um nível mais intenso, como emaranhamento ou superposição de estados. Se mais modos (partes) em maior desequilíbrio para os selecionados, mais rápido o sistema pode se mover para o equilíbrio e, como no mundo clássico, literalmente se tornar mais frio.
“Nosso trabalho fornece basicamente uma receita para gerar o efeito Mpemba em sistemas quânticos, nos quais uma transformação física que efetivamente ‘aquece’ o sistema quântico pode ser realizado”, diz o físico John Goold, do Trinity College, em material de divulgação do estudo . “Essa transformação, então, paradoxalmente permite que ele relaxe ou ‘esfrie’ exponencialmente mais rápido explorando características únicas na dinâmica quântica.”
Para que pode servir este estudo?
O estudo pode ser útil para o desenvolvimento de tecnologias que permitam o resfriamento mais rápido de computadores quânticos, que funcionam a temperaturas próximas do zero absoluto, -273,15 °C. O artigo não propõe uma técnica específica de exaustão, mas Zawadzki aponta o manuseio de campos magnéticos sobre materiais, a exemplo do alumínio de cromo e potássio, como uma técnica atualmente promissora.
Zawadzki é cauteloso em associar o estudo ao desenvolvimento de novas tecnologias, mas aponta para a possibilidade do efeito Mpemba ser relevante para a emergência de baterias quânticas, com carregamento muito mais rápido e maior capacidade de armazenamento, além do potencial para ser empregado em sistemas de atualização necessária na área de computação quântica.
O que podemos esperar para o futuro?
“Ainda não é possível prever quão longe ou perto estamos da criação de possíveis novas tecnologias de refrigeração. Isso pode acontecer daqui a algumas décadas ou em menos tempo”, pondera o físico Roberto Serra, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que não participou do estudo.
No curto prazo, a abordagem proposta no trabalho abre caminho para a física experimental testada em diferentes condições e materiais. Para o físico Marcelo Terra, do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica da Universidade Estadual de Campinas (Imecc/Unicamp), que também não fez parte do estudo, a teoria proposta é interessante e pode ser aplicada em diferentes sistemas experimentais.
Serra diz que o trabalho é muito convincente e deve atrair o interesse de vários grupos de pesquisa experimental. “É questão de tempo para alguém fazer os experimentos e testar essas ideias”, comenta o pesquisador da UFABC.
A reportagem acima foi publicada com o título “ Quanto mais quente, mais perto de congelar ” na edição impressa nº 345, de novembro de 2024.
Artigos científicos
MORODER, M. e outros. Termodinâmica do Efeito Quântico Mpemba. Cartas de revisão física. 4 fora. 2024.
MPEMBA, EB e OSBORNE, DG Legal? Educação Física. v.4, pág. 172. 1969